Educar


Vivemos um momento de transição dos tempos e das atitudes,
transição esta que torna somente parcialmente visível o novo
horizonte que desponta.
Discutir hoje os rumos da educação envolve discutir a mudança
paradigmática, e a formação de uma sociedade da informação ou da
era pós-industrial, em busca de um difícil equilíbrio entre regulação e
emancipação social.
Neste findar e iniciar de séculos estamos frente tanto à desordem
na regulação quanto na emancipação social, e o nosso lugar/tempo
ocorre em sociedades simultaneamente autoritárias e libertárias
(SANTOS, 2000). A valorização da liberdade e da igualdade, esteio
da democracia moderna, não encontra ressonância no cotidiano dos
povos e nações, especialmente nos com baixo índice de
desenvolvimento humano. Persiste a concentração dos meios de
produção, do conhecimento e da renda; a liberdade de escolha
expandiu, mas somente para os poucos que podem escolher; compras
sem sair de casa e navegação num mar de informações pela Internet;
o fim das certezas (PRIGOGINE, 1996); a globalização como fábula,
como perversidade, “por uma outra globalização” de Milton Santos
(2000), ou, como possibilidade; mundialização; hierarquias rígidas,
políticas ou corporativas em desintegração. Em paralelo, a
criminalidade e a desordem social cresceram (FUKUYAMA, 2000).Antigos ou modernos, tradicionais ou inovadores, os projetos
educacionais que definem ou tentam definir as práticas de ensino-
aprendizagem trazem no bojo da intencionalidade educacional
artefatos mais ou menos carregados de autoritarismo, alienação,
arbitrariedade, determinismo, (uni)direcionalidade, (in)flexibilidade,
reflexão, crítica, liberdade, autonomia (KOMATSU, 2002).
A educação encontra-se em um processo de mudança, mas ainda
é mais evidente a manutenção do  status quo que as inovações,
reformas ou transformações propriamente ditas.
No contexto da discussão teórica surgem novas emergências
educativas nas duas últimas décadas tais como o feminismo, a
ecologia, e o multiculturalismo (DEACON; PARKER, 1994;
McLAREN, 2000) contrapondo-se à formação “sexista” do masculino
como superior e universal; à exploração , domínio e espoliação do
meio ambiente, destacando novos valores na relação natureza-
homem;  e ao etnocentrismo, ampliando o cenário educacional às
múltiplas culturas, culturas outras em relação à cultura ocidental,
branca, e burguesa. O quanto tais debates atingem a prática
educacional cotidiana é uma outra questão. Para que docentes e
discentes passem do pensamento crítico à prática crítica há uma
distância a percorrer cujos caminhos os teóricos da educação não
cartografaram, posto que tarefa impossível apontar caminhos que têm
que ser inventados, criados, e trilhados dependendo do contexto e da
realidade peculiar a cada circunstância educacional.
Falta criação? Talvez nos sobre medo, e falte ousadia. Ousadia
para reinventar a roda, no sentido de melhorá-la e aperfeiçoá-la
permanentemente.
Quando imaginamos a concepção de novos currículos e o
desenvolvimento de novas metodologias de ensino-aprendizagem
como a aprendizagem baseada em problemas da Faculdade de
Medicina da Universidade de McMaster, Canadá no final da década
de 60 (SPAULDING, 1969), pensamos na mistura de ingredientes
educacionais de diversas correntes e teorias educacionais tais como a
influência do construtivismo , da psicologia cognitiva, da proposta de integração biopsicossocial, aliados a uma boa dose de criatividade de
um think-tank de aproximadamente 20 professores, que ao contrário
do que muitos pensam, não tinham nenhuma orientação teórica de
educadores como Dewey, Rogers ou Freinet, Piaget ou Vigotsky.
Aperfeiçoamentos e versões diferenciadas da aprendizagem
baseada em problemas são conhecidas no mundo todo três décadas
após o início da experiência original, contudo não surgiram nas
universidades outras metodologias ativas relevantes além da
aprendizagem baseada em problemas e da problematização.
Há, portanto, nas escolas e universidades um amplo predomínio
das aulas tradicionais, espelho da pedagogia da transmissão, com as
carteiras todas em linha, voltadas para a lousa, o professor falando, e
os estudantes tomando notas da apresentação, estudando “pelo
caderno, para a prova”.
Debates sobre a modernidade e pós-modernidade  trazem à
baila questões como: o que preservamos e rejeitamos da
modernidade? A modernidade possui tantos sentidos quantos forem
os pensadores; mas será que já fomos modernos? (LATOUR, 1994).
Será que já fomos modernos na educação?
A educação no mundo moderno está, cada vez mais, sendo
denunciada como um dos últimos e minados bastiões de uma época
cujos ídolos – a razão, o progresso e o sujeito autônomo – têm sido
irreparavelmente maculados por guerras mundiais, totalitarismo,
pobreza e fome em massa, destruição ambiental, e cujos próprios
avanços científicos e sucessos produtivos estão entrelaçados com
dominação e devastação de formações naturais e sociais (DEACON;
PARKER, 1994). Se sequer fomos bem sucedidos na proposta do
projeto educacional moderno, seríamos agora capazes de
implementar um projeto educacional pós-moderno?
Está lançado o desafio. O pós-moderno transcende, realmente
transforma, o moderno, em vez de rejeitá-lo totalmente (DOLL-JR.,
1997).   E o que seria uma educação na pós-modernidade? Consistiria,
para Doll-Jr (1997), em um relacionamento reflexivo entre professor
e estudante onde o professor não pede ao estudante que aceite a
autoridade do professor, ao contrário, ele pede que o estudante
suspenda a descrença nessa autoridade, reúna-se ao professor na
investigação, naquilo que o aluno está vivenciando; daí, o professor
concorda em ajudar o estudante a compreender e apreender o
significado e o sentido dos fatos, e em estar pronto a ser confrontado
pelo estudante, e em refletir com ele sobre o entendimento de cada
um.
Isto implica não somente num re-direcionamento, re-
ordenamento, re-organização da estrutura, dos processos e das
práticas, mas numa profunda reflexão dos sujeitos, pelos sujeitos da
educação. Onde estamos? O que desejamos? Para onde vamos?
Cremos que a educação do novo século deva aproximar-se de
uma pedagogia da possibilidade (McLAREN, 1999). Da possibilidade
na óptica dos educadores e dos educandos. Da possibilidade de maior
eqüidade, proximidade, e efetividade na relação estudante-professor e
professor-estudante. Da possibilidade concreta do desenvolvimento
da educação como um processo permanente ao longo da vida, e não
limitado –por tantas- instâncias formais e probatórias. Da
possibilidade que mulheres e homens ao longo da longa história
criaram de inteligir a concretude e de comunicar o inteligido, de
constatar e de encontrar as razões do constatado, de denunciar a
realidade constatada, e de anunciar a sua superação, onde a leitura
crítica do mundo é um que-fazer pedagógico-político
indicotomizável na reinvenção da sociedade e da educação (FREIRE,
2000). Uma utopia provisória.
A educação em massa produziu uma situação inusitada em que
sujeitos foram reduzidos a meros objetos do processo educativo,
objetos tanto quanto os conhecimentos a serem “dominados” ou os17
conteúdos a serem “adquiridos”. Instaurou-se a pedagogia da
transmissão de quem supostamente detém mais saber e poder, para
quem supostamente não os detém (KOMATSU, 2002).
Para Deacon e Parker (1994) o poder da razão humana moderna
que satura os discursos educacionais pode ser caracterizado como
uma série de grades interconectadas de relações de saber e poder, no
interstício das quais são constituídos sujeitos que são simultaneamente
ambas as coisas: tanto os alvos de discursos (seus objetos e invenções)
quanto os veículos de discursos (seus sujeitos e agentes). O sujeito
moderno, sobre o qual a própria razão se baseia, e cujo status derivado
é ocultado pelo excesso de objetificar outros, é assim denunciado
como um paradoxo: um efeito instável, fragmentado e
potencialmente contraditório (mas igualmente substancial) do saber e
do poder.
Pode-se falar em um sujeito da educação? Ou seriam sempre
sujeitos?
Quem educa, educa a alguém, e é educado ao educar, ou “[...]
quem forma se forma e re-forma ao formar, e quem é formado, forma-se e
forma ao ser formado” (FREIRE,1996 p.25). Assim, sujeitos da
educação somos todos nós educadores-educandos em uma relação
profícua de troca em dupla via: educador - educando e, educando -
educador. Isto implica em compartilhar tempo, comunicação e poder,
trabalhando em um processo diferenciado onde para nos educarmos
não podemos passivamente esperar por sermos educados. Precisamos
aprender, apreendendo ativamente informações em um contexto de
prática e realidade, associando a aprendizagem com a própria
experiência vivencial, estimulando a reflexão crítica e a aprendizagem
significativa. Realidade presente e futura, realidade histórica, mas da
história como possibilidade, que tem sempre a realidade como algo
passível de mudança pela nossa intervenção organizada
(KOMATSU, 2002).
Por que a educação não flui desta forma em uma difusão
permanente da anti-sujeição de professores e alunos à hierarquia da
inflexibilidade de conteúdos, processos e práticas pré-determinadas e
descontextualizadas? Oras, porque onde existe poder, existe18
resistência... E esta resistência nunca está em uma posição de
exterioridade em relação ao poder (FOUCAULT, 1994).
A resistência inercial que impera sobre todos nós é sermos
professores e alunos “tradicionais”: professor ativo e loquaz, avaliador
- inquisidor - opressor; estudante passivo e calado, avaliado-
inquirido-oprimido (KOMATSU, 2002).
Para avaliarmos criticamente e até recusarmos parte do que
somos, ou como somos, necessitamos minimamente descobrirmos o
que somos, como somos constituídos, e porquê, somos assim, e
imaginarmos, concebermos, criarmos novas maneiras de sermos
sujeitos. Isto implica em suplantar ortodoxias, pensamentos
hegemônicos e paradigmas (KOMATSU, 2002).
O papel do professor tem se reduzido ao papel de emissor –
como fonte inesgotável - de saber. Supostamente se trataria de um
interlocutor, mas não há interlocução, ou há pouca interlocução.
Predomina o monólogo em sala de aula, ao final do qual restaria
apenas uma questão: alguma pergunta? Dúvidas?
Os estudantes – quando não dormem ou conversam nas aulas
expositivas - devem pensar: “o que é que isto – a matéria dada, matéria
estudada - tem a ver comigo, com as outras pessoas (como os pacientes,
familiares, profissionais de saúde), com a vida?...”, ou na célebre
pergunta de T.S. Eliot: onde está o conhecimento perdido na
informação (KOMATSU, 2002)?
Este professor educa? É ele um educador? Ou simples
detentor/reprodutor/transmissor de um “conteúdo técnico”, de uma
matéria estanque ou assunto muito específico.
O professor do ensino superior se vê muitas vezes premido de
tempo pelas outras atividades, como a pesquisa, e na área médica, a
atenção à saúde. As universidades cobram uma produção científica, e
as gratificações e promoções na carreira guardam relação direta com
o que se publica, especialmente em periódicos estrangeiros. Publish or
perish, e perecem os estudantes, ao menos os da graduação
(KOMATSU, 2002).
Há um baixo interesse dos docentes pela capacitação “didático-
pedagógica”, até há pouco, matéria obrigatória dos cursos de pós-19
graduação. E dizer que algo é compulsório, é o mesmo que dizer que
é algo feito contra a vontade. Programas de capacitação docente
permanente, para não falar que inexistem, raramente são vistos nas
escolas. “O professor não se sente particularmente motivado para
envolver-se com projetos pedagógicos visando a melhoria do processo
de ensino-aprendizagem e pode, até mesmo, apresentar resistência,
por desacreditar ou por perceber que, “desvios” de suas atividades de
pesquisa para aumentar suas atividades de ensino possam representar
prejuízo para sua carreira acadêmica” (BATISTA; SILVA,1998 p. 46-
47). Quem pode modificar este estado de coisas senão os próprios
professores?
Em nossa opinião, o novo papel docente exigiria do professor:
assumir o ensino-aprendizagem como mediação: aprendizagem ativa
do estudante com o auxílio pedagógico do professor (LIBNEO, 1998);
transformar a escola das práticas multi e pluridisciplinares em uma
escola de práticas inter e transdisciplinares, integradas à vida
cotidiana; conhecer e aplicar estratégias e metodologias ativas de
ensinar-aprender a pensar, ensinar-aprender a aprender, ensinar-
aprender a cuidar, ensinar-aprender a avaliar; perseverar no empenho
de apoiar os estudantes a buscarem e alcançarem uma perspectiva
crítica dos conteúdos (cambiantes) e das práticas, rumo à apreensão
das realidades presentes e futuras através de um exercício crítico-
reflexivo sintonizado com as mudanças e os conflitos do mundo em
que vivemos; aperfeiçoamento da linguagem, da comunicação verbal
e não-verbal, e da habilidade de mediar o trabalho em grupo,
tornando-o não mais competitivo, mas produtivo e agradável;
assimilar, com olhar crítico, as novas tecnologias, adaptando-as às
necessidades efetivamente verificadas; compreender o
multiculturalismo, respeitando crenças, valores, diferenças, atitudes,
limites e possibilidades individuais; avaliar e auto-avaliar-se de
maneira sistemática e formativa, sendo cuidadoso e criterioso no seu
feed-back aos estudantes e ao programa;  integrar no exercício da
docência- discência a dimensão afetiva (LIBNEO, 1998).
Isto pressupõe uma mudança radical da forma de conceber os
projetos educacionais ou as matrizes curriculares. Isto requer uma20
nova concepção do ser docente: facilitador, mediador, e orientador da
aprendizagem de cada estudante, e da sua própria aprendizagem, em
um processo de reflexão através da ação (SCHÖN, 2000).
Ser professor sujeito da educação é estar permanentemente
comprometido com a educação: a dos outros (professores, estudantes,
comunidade) e a sua própria (professor) (KOMATSU, 2002).
Uma análise do que tem sido o papel do estudante nos mostra
um interesse e um entusiasmo crescente pelas questões educacionais.
Na área médica, os congressos da ABEM – Associação Brasileira de
Educação Médica e os fóruns e oficinas de trabalho da CINAEM –
Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico
têm demonstrado a pujança da participação estudantil, seja nas
apresentações e debates, seja na produção de pôsteres e temas-livres
sobre educação.
No contexto das escolas médicas, no entanto, são frustrantes os
relatos da efetiva contribuição dos estudantes em mudanças
educacionais concretas. Seria a força de mobilização dos líderes
estudantis suplantada pela resistência inercial da massa de docentes e
discentes? A ruptura com as concepções tradicionais da educação é
uma tarefa hercúlea que exige um sincronismo e uma somatória de
forças docentes e discentes (KOMATSU, 2002).
Certamente não é possível aceitar o estudante como um mero
espectador passivo da educação.
Espera-se do estudante enquanto educando uma preocupação e
atenção particular com a sua própria capacitação e desenvolvimento
na educação formal (escolas, cursos), ou informal (não
institucionalizada), intencional ou não-intencional (não-sistemática,
não-planejada), curricular ou extra-curricular.  
Tal preocupação deve expressar-se através da participação ativa
e diferenciada no processo de ensino-aprendizagem, onde orientado
pelos professores, deve desenvolver atividades de auto-aprendizagem
que resultem em uma gradação crescente – através de sucessivas
aproximações - da aprendizagem significativa e autodirigida.
Ampliando horizontes, o educando deve também participar do
planejamento das próprias atividades de aprendizagem, dos
conteúdos a serem explorados, das estratégias de busca, avaliação e
seleção de dados e informações, e dos recursos de aprendizagem a
serem utilizados.
O entendimento da construção, organização, avaliação crítica e
utilização do conhecimento, o desenvolvimento de habilidades e
atitudes, e a interação com o mundo, com as pessoas, a realidade, e a
comunidade, precedem em importância o domínio de conteúdos
gerais ou específicos.
Conteúdos e continentes transformam-se; a educação como
processo para toda a vida, exige mudanças no  modus operandi
dominante das escolas e isto é também uma tarefa discente.
Organizar-se, fazer-se representar, reivindicar, conquistar, participar:
atitudes inerentes ao ser estudante.
Quem melhor que o estudante para identificar os seus hiatos de
conhecimentos e habilidades? A avaliação diagnóstica, formativa, e
somativa do estudante deve subsidiar a auto-avaliação feita por cada
educando. É importante ressaltar que a avaliação deve ter como
finalidade subsidiar a transformação da realidade. Antes de vigiar e
punir, a avaliação do estudante deve subsidiar a identificação de
qualidades e debilidades, sempre em tempo de corrigir o processo de
aprendizagem (KOMATSU, 2002).
Quem melhor que o estudante para ajudar a identificar as falhas
de um programa educacional? A participação discente na avaliação
do programa é fundamental. Anônima, confidencial, e protegida dos
“perigos da avaliação”, ela deve subsidiar o desenvolvimento
permanente dos programas educacionais, envolvendo avaliação dos
docentes, dos pares, das atividades pré-programadas, dos recursos de
aprendizagem, e da organização (KOMATSU, 2002).  
Ser estudante sujeito da educação é estar permanentemente
comprometido com a educação: a sua própria (estudante) e a dos
outros (estudantes, professores, comunidade) (KOMATSU, 2002).
A educação é um direito de todos, mas responsabilidade de
quem?
Já tratava Dewey (1916) na sua obra,  “Democracy and
Education”, a educação como: necessidade de vida, função social,
direção, crescimento.
Em todos estes sentidos, diríamos que a educação é
responsabilidade, assim como direito, de todos. Responsabilidade da
nação, do país, do governo, dos legisladores, dos juristas, das famílias,
dos educadores, dos próprios educandos, dos cidadãos.
São bem conhecidas as possibilidades, limites e os  propósitos
governamentais na esfera da Educação.
Há que se estabelecer uma política de desenvolvimento
permanente e melhoria da qualidade da Educação.
Quanto à responsabilidade das escolas e universidades  deve-se
destacar, segundo Santos (1995, p.187), que:
“... a universidade confronta-se com uma situação complexa: são-
lhe feitas exigências cada vez maiores por parte da sociedade ao
mesmo tempo em que se tornam cada vez mais restritivas as
políticas de financiamento das suas atividades por parte do
Estado. Duplamente desafiada pela sociedade e pelo Estado, a
universidade não parece preparada para defrontar os desafios,
tanto mais que estes apontam para transformações profundas e
não para simples reformas parcelares. Aliás, tal impreparação,
mais do que conjuntural, parece ser estrutural, na medida em que
a perenidade da instituição universitária, sobretudo no mundo
ocidental, está associada à rigidez funcional e organizacional, à
relativa impermeabilidade às pressões externas, enfim, à aversão
à mudança”.
Assim, que responsabilidade sobre a educação médica esperar da
universidade? Transformação ou simples luta pela preservação e
manutenção? Todas as evidências parecem suportar a segunda
possibilidade.
Seriam então os próprios educadores e educandos os maiores
responsáveis pela Educação? Em nossa opinião, sim.
Ninguém melhor que os próprios educadores e educandos para
conhecerem a realidade específica de cada escola médica, suas
fragilidades e fortalezas, vantagens e desvantagens, seu espaço e lugar
na comunidade, sua gente.
A responsabilidade que colocamos para reflexão é a de cada ação
educativa. Os sujeitos da educação que mais importam à
particularidade de cada prática pedagógica substancial, são os sujeitos
do polo docente e os sujeitos do polo discente, posto que ativos,
congruentes ou divergentes, cada qual com sua óptica da realidade,
sua perspectiva histórica, seus conhecimentos e experiências prévias,
trabalhando o processo de construção de saberes, um processo
essencialmente humano: educativo (KOMATSU, 2002).
Docentes e discentes não podem se eximir da responsabilidade
maior pela Educação, enquanto agentes não somente das atividades
didáticas, mas também das suas mudanças e inovações.
A educação é tida como esteio da emancipação, da autonomia,
da esperança e do desenvolvimento da humanidade. Não seria então
exatamente dela, educação, a tarefa da humanização? Há que ser
mais humano no cotidiano da educação, da saúde, da vida.
A ação e o pensamento educacional do findar e iniciar de século
“não abandonaram absolutamente nem a paixão pelo homem, pelo
seu resgate e pela sua realização, nem a consciência do rigor teórico
que guiaram até aqui a sua história... a pedagogia continuará a ser
uma ciência para o homem, cujo rigor deverá operar em torno do
exercício de uma identidade crítica, desejosa e capaz de ser radical”
(CAMBI, 1999).
A busca por uma racionalidade técnica imperou nos primórdios
da educação médica com o nascimento da clínica (FOUCAULT,
1998). A crise da confiança no conhecimento profissional surge com o25
questionamento da capacidade do “modelo clínico” em oferecer
resposta ao raciocínio probabilístico e não determinista, às incertezas,
às singularidades das expressões, manifestações, e respostas, e à
diversidade cultural e de valores da sociedade.
Neste sentido, Schön (2000, p.15) considera que:
“Na topografia irregular da prática profissional, há um terreno
alto e firme, de onde se pode ver um pântano. No plano elevado,
problemas possíveis de serem administrados prestam-se a soluções
através da aplicação de teorias e técnicas baseadas na pesquisa.
Na parte mais baixa, pantanosa, problemas caóticos e confusos
desafiam as soluções técnicas. A ironia desta situação é o fato de
que os problemas do plano elevado tendem a ser relativamente
pouco importantes para os indivíduos ou o conjunto da sociedade,
ainda que seu interesse técnico possa ser muito grande, enquanto
no pântano estão os problemas de interesse humano. O
profissional deve fazer suas escolhas. Ele permanecerá no alto,
onde pode resolver problemas relativamente pouco importantes,
de acordo com padrões de rigor estabelecidos, ou descerá ao
pântano dos problemas importantes e da investigação não-
rigorosa?.
Tal dilema tem duas fontes: em primeiro lugar a idéia
estabelecida de um conhecimento profissional rigoroso, baseado
na racionalidade técnica, e, em segundo, a consciência de zonas
de prática pantanosa e indeterminadas, que estão além dos
cânones daquele conhecimento”.
Evitar o pântano e restringir-se ao terreno alto é negar a
complexidade humana, e, por conseguinte, a complexidade da prática
médica e da educação.
A Medicina e as ciências da saúde são de natureza antes mesmo
que biológica, humana. Alegar que com o Projeto Genoma teríamos
uma ciência exata é reduzir a teia da vida a algo previsível e certo.
Emerge a proposta da humanização da prática médica através
da humanização da educação médica. Mas resgatar a Educação
Médica seria responsabilidade de quem? Dos sujeitos da Educação
Médica.
A responsabilidade da transformação e desenvolvimento
permanente da Educação Médica, portanto, tem como protagonistas
educadores e educandos.
Cabe aos educadores não o centro de maior importância do
desenvolvimento permanente da Educação Médica, nem resta aos
educandos a periferia destas mudanças, pois ambos, docentes e
discentes necessitam engendrar esforços, reunir forças, afinar
estratégias, e oferecer suporte logístico para mover a enorme pedra
que cerra o acesso das escolas médicas às inovações, reformas e
transformações curriculares (KOMATSU, 2002).
Parte substancial destas mudanças na Educação Médica envolve
o resgate do humano na relação docente-discente-paciente.
Mas, onde se perdeu o humanismo na Medicina?
Nos modelos médico, biomédico, ou clínico, no distanciamento
e a na rejeição ao humano em nossas atitudes cotidianas, substituindo
sempre que possível o (inter)pessoal (caloroso) pelo impessoal (“frio”),
trocando a proximidade (do domicílio, da família) pela distância (do
ambulatório/hospital inacessível), o diálogo pela tecnologia “de
ponta”, o trabalho, a reflexão, a recomendação e decisão conjunta
(equipe de saúde, paciente, cuidador/familiar) pela decisão isolada
(“ordem médica”) (KOMATSU, 2002).
Inexiste conhecimento profissional rigoroso, baseado na
racionalidade técnica que dê conta da atuação no terreno pantanoso
das relações interpessoais da educação ou das profissões da saúde,
especialmente se tal conhecimento não se plasmar com a prática e a
realidade em atitudes e competências favoráveis ao
(re)estabelecimento da confiança mútua e empatia nas relações
educador-educando e profissional de saúde-paciente (KOMATSU,
2002).
Resgatar a dignidade na educação e na saúde passa por respeitar
limites, mas avançando sempre no sentido das novas possibilidades,
rompendo com o existente em busca do imaginário, do ideal, do
utópico. Mas uma compreensão profunda da realidade é essencial ao
exercício da utopia, condição para que a radicalidade da imaginação
não colida com o seu realismo (SANTOS, 1995).
Discutir sobre novos olhares para as competências implica em
tratar de competências relevantes, ou ao menos da busca por maior
relevância nas competências imaginadas, concebidas, prescritas,
faladas... Praticadas, efetivadas. Seguem-se alguns esboços e
possibilidades.
Competências para o resgate à perda do humano em nossas
vidas. Garcia dos Santos (1999, p.297) referindo-se a um período de
ondas de revolução: eletrônica, das comunicações, dos novos
materiais, biotecnológica, e o impacto crescente da evolução
tecnocientífica e econômica sobre a sociedade e os efeitos colaterais
que ela suscita em todas as áreas, cita o filósofo japonês Keiji Nishitani
e sua avaliação da relação paradoxal homem – natureza:
“Quando as leis da natureza assumem o máximo controle sobre
os seres e os seres assumem o máximo de controle sobre as leis,
rompe-se a barreira entre a humanidade e a naturalidade da
natureza, instaurando-se uma profunda perversão, uma inversão
da relação mais elementar na qual o homem assumira o controle
das leis da natureza por meio do controle que estas mesmas leis
forjaram sobre a vida e o trabalho do homem; agora as leis da
natureza reassumem o controle através de um processo de
mecanização do homem. A essa inversão corresponde uma outra,
relativa à vigência das leis da natureza sobre o homem. Pois o
máximo de racionalidade científica e o máximo de natureza
desnaturalizada levam o homem a comportar-se como se existisse
inteiramente fora das leis da natureza, instaurando um modo de
ser que se ancora no niilismo”.
Haveríamos, portanto, de resgatar a perda do humano em
nossas casas, ruas, escolas, empresas, numa contra-corrente da
desumanização das práticas... E competências.
No contexto da educação de profissionais de saúde, há que se
enfatizar ainda mais o que vem ocorrendo ao longo do
desenvolvimento do currículo de graduação, a exemplo do curso de
Medicina, onde estudantes vivem, do primeiro ao sexto ano, um
gradual distanciamento de quase tudo que não seja a “prática28
médica”, no sentido estrito, abandonando paulatinamente as
atividades esportivas, culturais, e de lazer, essenciais para a
preservação da qualidade de vida, bem como para a nossa
manifestação e a expressão humanista, trocando-as por plantões,
cirurgias, procedimentos, exames, hospital, enfermaria,
ambulatório...
Proteger o tempo de cada estudante da graduação e pós-
graduação (especialização, residência médica, mestrado, doutorado),
estabelecendo limites precisos para as atividades pré-programadas e,
estimulando os desenvolvimentos esportivo, social e cultural, é vital
para preservar e cultivar o “homem humano” que habita o interior de
cada um de nós.
Que a vida não seja somente trabalho (competente), mas
também harmonia entre amor, poesia e sabedoria: “Se a poesia
transcende sabedoria e loucura, é necessário aspirarmos viver o estado
poético e assim evitar que o estado prosaico engula nossas vidas,
necessariamente tecidas de prosa e poesia. A sabedoria pode
problematizar o amor e a poesia, mas o amor e a poesia podem
reciprocamente problematizar a sabedoria” (MORIN, 1999, p.10).
Competências para saber cuidar. Boff (1999, p.11-13), referindo-
se ao “tamagochi” (aquele bichinho virtual que tinha que ser
alimentado, higienizado, e adoecia quando o dono não brincava com
ele) e o cuidado escreveu:
“A sociedade contemporânea, chamada sociedade do
conhecimento e da comunicação, está criando,
contraditoriamente, cada vez mais incomunicação e solidão entre
as pessoas. A Internet pode conectar-nos com milhões de pessoas
sem precisarmos encontrar alguém. Pode-se comprar, pagar as
contas, trabalhar, pedir comida, assistir a um filme sem falar com
ninguém. Para viajar, conhecer países, visitar pinacotecas não
precisamos sair de casa. Tudo vem à nossa casa via on line.
[...]
Essa anti-realidade afeta a vida humana naquilo que ela possui
de mais fundamental: o cuidado e a com-paixão. Mitos antigos e
pensadores contemporâneos dos mais profundos nos ensinam que29
a essência humana não se encontra tanto na inteligência, na
liberdade ou na criatividade, mas basicamente no cuidado. O
cuidado é, na verdade, suporte real da criatividade, da liberdade
e da inteligência. No cuidado se encontra o ethos fundamental do
humano. Quer dizer, no cuidado identificamos os princípios, os
valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações
um reto agir.
[...]
O cuidado serve de crítica à nossa civilização agonizante e
também de princípio inspirador de um novo paradigma de
convivialidade”.
Necessitamos resgatar a essência do cuidar (e do autocuidar)
como essência da vida e competência essencial.
Numa reflexão, mesmo os profissionais da saúde que trariam
implícito à sua função o saber cuidar, não têm assegurado nos
currículos de graduação um eixo integrador para o desenvolvimento
cabal da competência saber-cuidar, especialmente, se incluirmos aí o
saber - autocuidar-se, estendendo a dimensão cuidadora a si mesmo.
Valorizar o cuidar, sem detrimento do curar (quando possível),
relembrando o princípio hipocrático do aliviar, sedar, minorar
sofrimentos, paliar, é uma tarefa fundamental da qual nenhuma
organização educacional pode isentar-se.
Obviamente, quem cuida, cuida de alguém...
Campos (1997), nos lembra que, a reforma da clínica moderna
deve assentar-se sobre um deslocamento da ênfase na doença para
centrá-la sobre o sujeito concreto, um sujeito portador de uma ou
várias enfermidades ou necessidades (de cuidados), marcado por uma
biografia singular, e que vive um contexto social específico, fato que
exige uma prática clínica ampliada na prestação do cuidado integral à
pessoa.
Entender as necessidades de cuidados é entender as necessidades
do sujeito, na singularidade de sua condição e expressão, na
interpretação da sua linguagem verbal e não-verbal, que envolve as
sutilezas do gesto, e da atitude. E isto implica auscultar o interior:
nosso e de outrem.  30
Competências para “buscar um caminho distante tanto das
ilusões de um saber especialista quanto de uma problematização
ociosa” (KASTRUP,1999, p.204-205):
“A chave da política inventiva é a manutenção de uma tensão
permanente entre a ação e a problematização. Trata-se de seguir
sempre um caminho de vaivem, inventar problemas, e produzir
soluções, sem abandonar a experimentação. A opção por este
caminho implica ter a coragem de correr os riscos do exercício de
uma prática, mas também de suspender a ação e pensar. É o
exercício de uma coragem prudente. É desconfiar das próprias
certezas, de todas as formas prontas e supostamente eternas e,
portanto inquestionáveis, mas é também, buscar saídas, linhas de
fuga, novas formas de ação, ou seja, novas práticas cujos efeitos
devem ser permanentemente observados, avaliados e reavaliados.
Acolher a incerteza será a sua força, e não sua fragilidade”.
Especialista, mas especialista em o quê? Quase todos somos ou
seremos especialistas em algo, mas em algo que quase nunca é ou será
–isoladamente - a solução para problemas que despontam complexos
na vida real. Há que se reconhecer o limite racional da experiência,
sem desperdiçá-la, e sem destruir as possibilidades da experimentação
e da ação.
Sabemos fazer isto, mas é isto mesmo que devemos fazer agora?
A problematização – reflexão – experimentação / ação é e será um
processo constante ao longo de nossas vidas, e o que não podemos nos
permitir é adotarmos uma atitude de permanência isolada e estática
em um dos pólos: problematização (imobilizadora) ou ação (pouco
flexiva). A competência requerida aqui é saber pensar antes de agir,
sem imobilizar-se.
Devemos enfim, buscar competências relevantes que nos
aproximem de uma pedagogia da possibilidade. Da possibilidade de
escolher o que aprender, de aprender, de saber, de fazer, viver, refletir,
avaliar, re-aprender, re-fazer, re-viver, re-avaliar... e, assim continuar
preservando a capacidade inventiva, criativa, pessoal, e única:
humana.
Competências não devem dirigir o processo de aprendizagem
dos estudantes para objetivos comportamentais de tipo behaviorista,
mas orientar e permitir sucessivas aproximações do educando ao
exercício de processos mentais de apropriação ativa de conhecimentos
e de maneiras de agir e atuar, não limitada à instalação de fazeres e
procedimentos.
Ser competente não deve restringir-se, em nosso entendimento,
à simples instalação de  softwares em nossa mente que permitam a
execução mecanicista de tarefas do tipo: ser capaz de diagnosticar,
realizar um procedimento, tratar, curar... Pelo contrário, deve
permitir um exercício permanente, antes do “como”, do “por quê?”, e
do “para quê?”: conhecer, fazer, ou ser assim.
Ganha relevância então, o desenvolvimento de competências tais
como saber cuidar, saber pensar, e resgatar o humano em nossas
práticas e em nossas vidas. Um novo olhar para as competências..